Em virtude das condições
sanitárias das cidades e do desconhecimento da etiologia das doenças
infecciosas, grandes epidemias assolaram as Nações no passado,
dizimando suas populações, limitando o crescimento demográfico,
e mudando, muitas vezes, o curso da história.
Tais epidemias foram genericamente
rotuladas de peste, embora muitas delas não tenham sido causadas
pelo bacilo da peste (Yersinia pestis) e fossem, provavelmente,
epidemias de varíola, tifo exantemático, cólera, malária
ou febre tifóide.
Possivelmente a primeira
notícia sobre a peste bubônica seja a narrativa que se encontra
na Bíblia sobre a praga que acometeu os filisteus. Estes tomaram
dos hebreus a arca do Senhor e foram castigados. "A mão do Senhor
veio contra aquela cidade, com uma grande vexação; pois feriu
aos homens daquela cidade, desde o pequeno até ao grande e tinham
hemorróidas nas partes secretas" (Samuel 1:6.9). Decidiram, então,
devolver a arca, com a oferta de 5 ratos de ouro e 5 hemorróidas
de ouro. "Fazei, pois, umas imagens das vossas hemorróidas e as
imagens dos vossos ratos, que andam destruindo a terra, e dai glória
ao Deus de Israel" (Samuel 1:6.5). E os hebreus também foram vitimados
pela peste após receberem a arca de volta. "E feriu o Senhor os
homens de Bete-Semes, porquanto olharam para dentro da arca do Senhor,
até ferir do povo cinqüenta mil e setenta homens; então
o povo se entristeceu, porquanto o Senhor fizera grande estrago entre o
povo (Samuel 1:6.19).1
É digno de nota o fato de que os povos daquela época já
haviam estabelecido ligação entre os ratos e a peste; do
contrário, a oferta de expiação não seria constituída
de hemorróidas (bubões) e de ratos. Aliás, esta ligação
já havia sido referida em textos antigos da medicina hindu (Susruta,
1000 d.C.) 2
A palavra Epholim do texto
original hebraico tem o sentido de inchação, tumefação,
e poderia referir-se a gânglios enfartados (bubões na região
inguinal) e não a uma afecção benigna como as hemorróidas.
Os gânglios inflamados ou bubões, que caracterizam a peste
é que lhe valeram o nome de peste bubônica.3
Em edições
mais recentes da Bíblia, os seus organizadores tiveram o bom senso
de trocar "hemorróidas" por "tumores" (A Bíblia Sangrada.
Trad. de João Ferreira de Almeida, 4a. edição,
revista e atualizada no Brasil. Milwaukee, Spanish Publications, Inc.,
1993, p. 302-3).4
As maiores epidemias registradas
pelos historiadores foram a peste de Atenas, a peste de Siracusa, a peste
Antonina, a peste do século III, a peste Justiniana e a Peste Negra
do século XIV. No interregno entre as citadas epidemias, outras
de menor vulto foram registradas.
2. A. Castiglioni. História da medicina (trad, de R Laclette); São Paulo, Cia. Editora Nacional, p. 104, 1947.
3. P. Santos. "O termo hemorróidas na Bíblia". Jornal Brasileiro de Medicina 12, pp.511-513, 1967.
4. A Bíblia Sangrada. Trad. de João Ferreira de Almeida, 4a. ed.., 1993, pp. 302-3
[...] "No começo do verão, os peloponesos e seus aliados invadiram o território da Ática. Firmaram seu campo e dominaram o país. Poucos dias depois, sobreveio aos atenienses uma terrível epidemia, a qual atacou primeiro a cidade de Lemos e outros lugares. Jamais se vira em parte alguma açoite semelhante e vítimas tão numerosas; os médicos nada podiam fazer, pois de princípio desconheciam a natureza da enfermidade e além disso foram os primeiros a ter contato com os doentes e morreram em primeiro lugar. A ciência humana mostrou-se incapaz; em vão se elevavam orações nos templos e se dirigiam preces aos oráculos. Finalmente, tudo foi renunciado ante a força da epidemia.
[...] Em geral, o indivíduo no gozo de perfeita saúde via-se subitamente presa dos seguintes sintomas: sentia em primeiro lugar violenta dor de cabeça; os olhos ficavam vermelhos e inflamados; a língua e a faringe assumiam aspecto sanguinolento; a respiração tornava-se irregular e o hálito fétido. Seguiam-se espirros e rouquidão. Pouco depois a dor se localizava no peito, acompanhada de tosse violenta; quando atingia o estômago, provocava náuseas e vômitos com regurgitação de bile. Quase todos os doentes eram acometidos por crises de soluços e convulsões de intensidade variável de um caso a outro. A pele não se mostrava muito quente ao tato nem também lívida, mas avermelhada e cheia de erupções com o formato de pequenas empolas (pústulas) e feridas. O calor intenso era tão pronunciado que o contato da roupa se tornava intolerável. Os doentes ficavam despidos e somente desejavam atirar-se na água fria, o que muitos faziam...". "A maior parte morria ao cabo de 7 a 9 dias consumida pelo fogo interior. Nos que ultrapassavam aquele termo, o mal descia aos intestinos, provocando ulcerações acompanhadas de diarréia rebelde que os levava à morte por debilidade.
[...] A enfermidade desconhecida castigava com tal violência que desconcertava a natureza humana. Os pássaros e os animais carnívoros não tocavam nos cadáveres apesar da infinidade deles que ficavam insepultos. Se algum os tocava caía morto.
[...] Nenhum temperamento, robusto ou débil, resistiu à enfermidade. Todos adoeciam, qualquer que fosse o regime adotado. O mais grave era o desespero que se apossava da pessoa ao sentir-se atacado: imediatamente perdia a esperança e, em lugar de resistir, entregava-se inteiramente. Contaminavam-se mutuamente e morriam como rebanhos.5
As conseqüências da peste foram desastrosas para Atenas. Uma das vítimas da epidemia foi Péricles, o grande estadista, sob cujo governo a civilização grega atingiu o seu apogeu.
Muito se tem discutido sobre a verdadeira natureza desta epidemia de Atenas.6 A doença que mais se aproxima do quadro clínico descrito por Tucídides é o tifo exantemático; todavia, investigações recentes, utilizando técnicas avançadas de biologia molecular, sugerem tratar-se de febre tifóide. Papagrigoraks e col., em 2006, examinando a polpa dentária de esqueletos exumados de um antigo cemitério de Atenas da época da epidemia, detectaram, pela técnica de amplificação do DNA, a sequência genômica da Salmonella enterica serovar typhi, tendo sido negativas as pesquisas para os agentes da peste, tifo, antraz, tuberculose, varíola bovina e bartonelose.7
Foi contemporânea de Galeno, quem assim descreveu os sintomas apresentados pelos doentes: "Ardor inflamatório nos olhos; vermelhidão sui generis da cavidade bucal e da língua; aversão pelos alimentos; sede inextinguível; temperatura exterior normal, contrastando com a sensação de abrasamento interior; pele avermelhada e úmida; tosse violenta e rouquidão; sinais de flegmásia laringobrônquica; fetidez do hálito; erupção geral de pústulas, seguida de ulcerações; inflamação da mucosa intestinal; vômitos de matérias biliosas; diarréia da mesma natureza, esgotando as forças; gangrenas parciais e separação espontânea dos órgãos mortificados; perturbações variadas das faculdades intelectuais; delírio tranqüilo ou furioso e término funesto do sétimo ao nono dia".10 Vê-se que há certa semelhança do quadro clínico com o da peste de Atenas. Uma das vítimas da peste Antonina foi o próprio Imperador, Marco Aurélio,
6. J. C. Sournia; J. Ruffier. As epidemias na história do homem, 1964, p.79
7. M. J. Papagrigorakis; C. Yapijakis; P. N. Synodinos; E. Baziotopoulou-Valavani. "DNA examination of ancient dental pulp incriminates typhoid fever as
a probable cause of the Plague of Athens". International Journal of Infectious Diseases 10, pp.334-336.
8. O. C. Lopes. A medicina no tempo, 1969, pp. 163-164.
9. F. F; Cartwright, F. F. Disease and history, 1991, p. 13
10. O. C. Lopes. Op. cit., pp. 164-165.
Em 1347 a epidemia alcançou a Criméia, o arquipélago grego e a Sicília. Em 1348 embarcações genovesas procedentes da Criméia aportaram em Marselha, no sul da França, ali disseminando a doença. Em um ano, a maior parte da população de Marselha foi dizimada pela peste.
Em 1348 a peste chegou ao centro e ao norte da Itália e dali se estendeu a toda a Europa. Em sua caminhada devastadora, semeou a desolação e a morte nos campos e nas cidades. Povoados inteiros se transformaram em cemitérios.Calcula-se que a Europa tenha perdido. pelo menos. um terço de sua população.
Esta epidemia inspirou o livro DECAMERÃO, de Giovanni Bocaccio, que viveu de 1313 a 1375. As cenas que descreve no prólogo do livro se passam na cidade de Florença, na Itália. Eis alguns trechos:
"A peste, atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais. Incansável, fora de um lugar para outro, e estendera-se de forma miserável para o Ocidente. [...] Nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a pena qualquer providência dos homens".
Assim descreve Bocaccio os sintomas:
"Apareciam, no começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas inchações. Algumas destas cresciam como maçãs, outras como um ovo; cresciam umas mais, outras menos; chamava-as o povo de bubões. Em seguida o aspecto da doença começou a alterar-se; começou a colocar manchas de cor negra ou lívidas nos enfermos. Tais manchas estavam nos braços, nas coxas e em outros lugares do corpo. Em algumas pessoas as manchas apareciam grandes e esparsas; em outras eram pequenas e abundantes. E, do mesmo modo como, a princípio, o bubão fora e ainda era indício inevitável de morte, também as manchas passaram a ser mortais".
Retrata, a seguir, a situação de caos que se instalou na cidade:
Entre tanta aflição e tanta miséria de nossa cidade, a autoridade das leis, quer divinas quer humanas desmoronara e dissolvera-se. Ministros e executores das leis, tanto quanto outros homens, todos estavam mortos, ou doentes, ou haviam perdido os seus familiares e assim não podiam exercer nenhuma função. Em conseqüência de tal situação permitia-se a todos fazer aquilo que melhor lhes aprouvesse.
Uma das maiores dificuldades era dar sepultura aos mortos:
"Para dar sepultura a grande quantidade de corpos já não era suficiente a terra sagrada junto às Igrejas; por isso passaram-se a edificar Igrejas nos cemitérios; punham-se nessas Igrejas, às centenas, os cadáveres que iam chegando; e eles eram empilhados como as mercadorias nos navios".14
Em Avignon, na França, vivia Guy de Chauliac, o mais famoso cirurgião dessa época, médico do Papa Clemente VI. Chauliac sobreviveu à peste e deixou o seguinte relato:
"A grande mortandade teve início em Avignon em janeiro de 1348. A epidemia se apresentou de duas maneiras. Nos primeiros dois meses manifestava-se com febre e expectoração sanguinolenta e os doentes morriam em 3 dias; decorrido esse tempo manifestou-se com febre contínua e inchação nas axilas e nas virilhas e os doentes morriam em 5 dias. Era tão contagiosa que se propagava rapidamente de uma pessoa a outra; o pai não ia ver seu filho nem o filho a seu pai; a caridade desaparecera por completo". E continua: "Não se sabia qual a causa desta grande mortandade. Em alguns lugares pensava-se que os judeus haviam envenenado o mundo e por isso os mataram".15
Durante a epidemia, o povo, desesperado, procurava uma explicação para a calamidade. Para alguns tratava-se de castigo divino, punição dos pecados, aproximação do Apocalipse. Para outros, os culpados seriam os judeus, os quais foram perseguidos e trucidados. Somente em Borgonha, na França, foram mortos cerca de 50.000 deles.
Atribuía-se, também, a disseminação da peste a pessoas que estariam contaminando as portas, bancos, paredes, com ungüento pestífero. Muitos suspeitos foram queimados vivos ou enforcados. Em Koenisberg, na Alemanha, uma criada que havia transmitido a peste a seus patrões foi enforcada depois de morta e a seguir queimada. Na Itália, o conde que governava a Calábria decretou que todo pestoso fosse conduzido ao campo para ali morrer ou sarar, e ainda confiscou os bens dos que haviam adquirido a peste.
No meio de tanto desespero e irracionalidade, houve alguns episódios edificantes. Muitos médicos se dispuseram a atender os pestosos com risco da própria vida.. Adotavam para isso roupas e máscaras especiais. Alguns dentre eles evitavam aproximar-se dos enfermos. Prescreviam à distância e lancetavam os bubões com facas de até 1,80 m de comprimento. Frades capuchinhos e jesuítas cuidaram dos pestosos em Marselha, correndo todos os riscos. Foi fundada a Confraria dos Loucos, que invocava a proteção de São Sebastião para combater o medo da morte. São Roque foi escolhido o padroeiro dos pestosos. Tratava-se de um jovem que havia adquirido a peste em Roma e havia se retirado para um bosque para morrer. Foi alimentado por um cão, que lhe levava pedaços de pão e conseguiu recuperar-se.
As conseqüências sociais, demográficas, econômicas, culturais e religiosas dessa grande calamidade que se abateu sobre os povos da Ásia e da Europa, foram imensas. As cidades e os campos ficaram despovoados; famílias inteiras se extinguiram; casas e propriedades rurais ficaram vazias e abandonadas, sem herdeiros legais; a produção agrícola e industrial reduziu-se enormemente; houve escassez de alimentos e de bens de consumo; a nobreza se empobreceu; reduziram-se os efetivos militares e houve ascensão da burguesia que explorava o comércio. O poder da Igreja se enfraqueceu com a redução numérica do clero e houve sensíveis mudanças nos costumes e no comportamento das pessoas 16
A peste negra foi a maior, mas não a última das epidemias. A doença perseverou sob a forma endêmica por muitos anos e outras epidemias menores, localizadas, foram registradas nos séculos seguintes. Citam-se como surtos mais importantes a peste de Milão, Brescia e Veneza no século XVI; a peste de Nápoles, em 1656; a peste de Londres em 1655 (setenta mil mortes); a de Viena em 1713, e a de Marselha em 1720, que.matou metade de sua população.
Entre 1894 e 1912 houve uma outra pandemia que teve início na India que se estendeu à China (10 milhões de mortes). de onde trasladou-se para a costa do Pacífico, nos Estados Unidos. No Brasil, a peste entrou pelo porto de Santos em 1899 e propagou-se a outras cidades litorâneas. A partir de 1906 foi banida dos centros urbanos, persistindo como enzootia em pequenos focos endêmicos residuais.na zona rural 17
O terrível flagelo da peste inspirou a imaginação criativa de pintores famosos. Os quadros mais notáveis são: A peste em Atenas, do pintor belga Michael Sweerts (1624-1664), A peste em Nápoles, de Domenico Gargiulo (1612-1679), O triunfo da morte, do pintor belga Peter Breugel (1510-1569), e São Roque, de Bartolomeo Mantegna (1450-1523). Inspirou igualmente Albert Camus, prêmio Nobel de literatura, a escrever uma de suas obras mais conhecidas: "A peste".
No Novo Continente as mais importantes epidemias foram as de varíola, trazidas pelos colonizadores espanhóis e portugueses, que dizimaram as populações indígenas, e a de febre amarela, que atingiu os membros da expedição de Cristóvão Colombo e se espalhou para outros países do continente, inclusive o Brasil.autóctone da América Central. Finalmente cabe mencionar a pandemia de gripe, chamada gripe espanhola, oriunda da Europa, em 1918, após a Primeira Guerra Mundial, com cerca de 20 milhões de vítimas.18
11. O. C. Lopes. Op. cit., p. 165.
12. H. Zinsser. Rats, lice and history, 1996, pp. 146-147.
13. O. C. Lopes. Op. cit., p. 172
14. G. Boccaccio, 1979, pp. 11-16.
15 A. Castiglione, op, cit., 1947, p. 420
16 R. H. Major. A history of medicine, 1954, p. 341.
17 S. C. Ujvari. A história e suas epidemias, 2003, pp. 67-69
18. C. Liu. "Influenza". Infectous diseases, p. 3230
CASTIGLIONI, A. História da medicina (trad. de R L aclette); São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1947.
SANTOS, P. "O termo hemorróidas na Bíblia". Jornal Brasileiro de Medicina 12, pp.511-513, 1967.
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Nota de Direito Autoral: O texto deste artigo foi publicado em 2009 no livro "À sombra do plátano" pela Editora UNIFESP. A reprodução do mesmo por meio impresso ou eletrônico requer autorização prévia da Editora [http://www.fapunifesp.edu.br fone: (11) 3369-4000]
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